Artigo publicado no Boletim da Associação Portuguesa de Killifilia Vol. II, nº1 Jan./Fev. 1999
Por: Alberto Reis
Os killies que pertencem a este Género (um dos meus preferidos) encontram-se entre os mais belos peixes de aquário que existem. A sua área de distribuição corresponde à África Central e Oriental compreendida entre a Somália, a norte e a República da África do Sul, a sul. O extremo ocidental corresponde ao Tchade onde habita o N. (Prono.) kiyawensis.
O seu biótopo típico corresponde a águas temporárias em zonas de savana ou de transição entre a savana e a floresta. Habitam poças que secam pelo menos uma vez por ano, que cobrem um leito sedimentar e lodoso. Este habitat marginal pode apresentar-se extraordinariamente poluído com grande carga de matéria orgânica, muitas vezes originado pelos excrementos de animais que lá vão beber. A água, geralmente turva, reduz a probabilidade de existência de plantas aquáticas submersas. Sendo massas de água sujeitas a forte evaporação, até à secura total, não surpreende que haja uma variação significativa dos parâmetros fisico-químicos da mesma da estação chuvosa para a estação seca, principalmente no que se refere à salinidade total e, consequentemente à condutividade e dureza total. O pH destes meios é variável mas aproxima-se da neutralidade (pH=7).
Dado que estamos em presença de águas pouco profundas e desprotegidas de vegetação circundante, estão expostas ao impiedoso sol africano e podem atingir temperaturas máximas superiores a 35ºC! O acentuado arrefecimento nocturno leva a elevadas amplitudes térmicas que podem ser benéficas se recriadas em aquário. É o Género de killies cujos representantes toleram temperaturas da água mais elevadas, e são adequados para os criadores que infelizmente não têm a possibilidade de possuir ar condicionado nas suas casas como é o caso do autor destas linhas. As temperaturas da água inferiores a 22ºC devem ser evitadas a todo o custo em aquário. Caso contrário, a saúde dos Nothobranchius pode ficar seriamente comprometida.
Foi dito atrás que os killies deste Género habitam águas carregadas de poluição orgânica e, em consequência, de elevada produção de biomassa, cor e odores. Por ironia do destino, estes peixes, quando mantidos em cativeiro, exigem água limpa, renovada com muita frequência e um aquário sem lixo, nomeadamente sem restos de comida. Sob pena de adoecerem, sendo muito susceptíveis a contraírem Oodinium. Esta doença quando detectada numa fase inicial, é perfeitamente curável. Os peixes apresentam uma respiração acelerada, ficam mais estáticos e ficam cobertos de pequenas escamas esbranquiçadas ao longo de todo o corpo. Como medida profilática, é frequente adicionar sal (cloreto de sódio) na dose de 1 colher de chá por cada 5 litros de água. Se mesmo assim a doença aparecer, dever-se-á adicionar sal duma forma escalonada (por exemplo: 1 grama de sal/litro de água cada dois dias) até desaparecimento dos sintomas por completo. Os medicamentos comerciais contra o Oodinium, tão eficazes com a maior parte dos peixes tropicais de água doce, falham aqui quase por completo. Uma excepção deve ser feita em relação ao medicamento Oodinol da JBL. Quando aplicado no início de cada noite em doses ligeiramente inferiores às aconselhadas no folheto e até três vezes consecutivas, tendo o cuidado de renovar a água, pelo menos parcialmente no fim do tratamento, pode levar a recuperações inesperadas. Ainda há outras medidas preventivas que se podem aplicar. Alguns criadores colocam um fio de cobre mergulhado no aquário. O Oodinium é muito sensível ao cobre, enquanto os nossos Nothobranchius toleram doses apreciáveis deste metal. Outra medida fácil de implementar é a de alcalinizar a água. Um pH superior a 8 inibe a proliferação de Oodinium. Para tal basta adicionar bicarbonato de sódio à água do aquário. Uma colher de sopa por cada 5 litros de água é suficiente.
Do que foi dito, não custa reconhecer que estes lindos killies não são adequados para criadores inexperientes e/ou com pouco tempo livre para os acompanhar.
Vamos à descrição destes peixes. Aparentemente parecem válidas até à data cerca de 45 espécies, e há mais de uma dezena de populações que se encontram em fase de estudo que possam levar à atribuição do estatuto de nova espécie. Praticamente em todos os anos são reconhecidas novas espécies. Dado que na sua área de distribuição geográfica existem países com elevado grau de conflitualidade, nomeadamente a Somália e o Uganda, entre outros, as expedições não se têm feito com o ritmo que seria de desejar, pelo que se prevê a descoberta de muitas mais espécies num futuro não muito distante. Eu próprio espero fazer no prazo de dez anos uma viagem de exploração até à África Oriental, provavelmente até Moçambique, se a saúde, o tempo livre, a disponibilidade financeira e a segurança mínima para visitantes assim o permitam.
Em todas as espécies há um conjunto de características semelhantes que fazem com que este Género seja dos mais estáveis e homogéneos no que se refere a hábitos e morfologia. A dimensão típica dos machos encontra-se entre os 4 e os 6 centímetros de comprimento, sendo a fêmea ligeiramente inferior (1 centímetro menos aproximadamente para a mesma espécie). As excepções a estas medidas típicas vêm das espécies melanospilus (8 cm), orthonotus (8 a 10 cm) e do Paranothobranchius ocellatus que pode atingir 14 cm. O dimorfismo sexual é muito marcado, apresentando machos com cores vivas e contrastadas, com predominância do azul, vermelho e amarelo. As fêmeas são descoradas, sem quaisquer padrões à excepção das espécies melanospilus (pontos escuros) e fuscotaeniatus (riscas verticais escuras).
As espécies mais belas na minha opinião são: eggersi, flammicomantis, foerschi, kafuensis, kirki, kunhtae, melanospilus, orthonotus, rachovii e rubripinnis. As menos difíceis ou seja , aquelas pelas quais se devem iniciar os killiófilos neste Género são: elongatus, foerschi, guentheri e korthausae. Os mais difíceis parecem ser o N. furzeri e o Paranothobranchius ocellatus.
A manutenção de Nothobranchius em aquário não é das mais fáceis. Há determinados cuidados que podem diminuir a ocorrência de dissabores.
A eclosão dos alevins é feita pela molha de turfa que contém os ovos. Existe uma anomalia que afecta os killies anuais que faz com que os peixes se arrastem pelo fundo ou que tenham de nadar a grande velocidade para se manter acima. Tudo se deve a uma incapacidade de funcionamento da bexiga natatória. Os anglosaxónicos chamam aos peixes com estes sintomas “bellysliders”. O que é facto constatado é que muitos alevins podem apresentar esta anomalia de nascença, ou poderão adquiri-la ao longo da sua vida. Pouco se sabe sobre as causas desta anomalia, tendo lido opiniões bastante díspares e algumas vezes contraditórias. A hipótese que seja congénita não parece muito provável. Filhos de bellysliders podem ser normais. Se for adquirida, há várias causas prováveis, nomeadamente a falta de oxigénio dissolvido na água e eventualmente por via infecciosa. Se for por via infecciosa, seria conveniente provar que é uma anomalia contagiosa.
Um facto provado e comprovado é que, se a molha da turfa se der com água nova (sem cloro) com uma temperatura inferior à ambiente em 10ºC, até um mínimo de 15ºC, e se tiver o cuidado de adicionar um comprimido de oxigénio algum tempo antes (até dissolver), então o número de bellysliders diminui drasticamente. A eclosão dos alevins, se ocorrer, é rápida, e estes estão aptos a receber alimentos imediatamente. Geralmente transfiro os alevins para um novo aquário, sem cascalho e sem filtro de fundo, com dois ou três centímetros de água. Cada dia acrescento 1 centímetro de água até ao volume final. (desejavelmente 20 ou 30 litros, para o crescimento mais rápido dos alevins). Os alevins devem ser alimentados pelo menos duas vezes por dia (o ideal seria 4 ou 5). Geralmente os alevins têm tamanho suficiente para ingerir nauplii logo após a nascença. De todas as formas, é aconselhável como medida preventiva, adicionar alguns infusórios nos dois primeiros dias. Alguns alevins mais pequenos e delicados, como é o caso de N. rachovii, exigem pelo menos 1 semana de dieta à base de infusórios. Logo que se atinge o volume final para crescimento devem-se fazer renovações de água nova com muita frequência (pelo menos 1 vez por semana) e vigorosas (até 90 e mesmo 100% (!) ,se forem “habituados” desde tenra idade). Os restos de comida e excrementos devem ser sifonados com a máxima periodicidade.
Na fase de crescimento é habitual haver grandes desequilíbrios no ritmo de crescimento. É de todos os Géneros de killies aquele que se encontram maiores diferenças de tamanho entre membros da mesma ninhada. Isso levanta problemas adicionais. O mais grave é o do canibalismo. O menos grave a curto prazo é o do stress provocado pelo(s) macho(s) dominante(s) sobre os restantes colegas de aquário. Em consequência, estes ficam mais assustadiços e apáticos, alimentam-se pior e ficam mais susceptíveis às doenças. E crescem ainda mais lentamente, aumentando ainda mais o desequilíbrio de tamanhos até…ao canibalismo.
Como evitar este problema? Retirando os machos de maiores dimensões para outro aquário logo que se note diferenças significativas de tamanho.
A maturidade sexual é atingida rapidamente, respeitando o ciclo da natureza onde vivem. Por exemplo, já criei N. flammicomantis que se reproduziam 5 semanas após a eclosão, já com tamanho próximo do máximo! Uma fêmea furzeri que criei atingiu 3.5 centímetros em 20 dias! Um Nothobranchius com mais do que 6 meses de idade pode considerar-se velho, apesar de poderem sobreviver em cativeiro mais do que um ano em condições muito especiais, principalmente em temperaturas subóptimas (22 a 23ºC). De todas as formas, os peixes nestas condições de senilidade ficam muito apáticos, perdem algum fulgor nas cores, ficam muito tempo perto do fundo e não produzem ovos, além de se alimentarem com menos sofreguidão.
A reprodução deverá ser recriada num aquário à parte para cada casal ou trio. Dez litros parecem ser suficientes para tal. Contudo, já reproduzi muitas vezes casais de Nothobranchius em aquários de tamanho mínimo (2 litros) tendo o cuidado de renovar a turfa e a água (praticamente 100% do volume) no máximo de 5 em 5 dias! A diminuição do números de ovos em relação aos aquários maiores foi compensada pela melhor operacionalidade e simplicidade de manipulação.
O substrato de postura deverá ser turfa em pó previamente fervida, até perfazer uma camada de 1 a 2 cm no fundo do aquário. Uma menor quantidade de turfa leva à diminuição do nº de ovos recolhidos, dado que ficam mais expostos e podem ser comidos pelos próprios pais. Alguns especialistas nestes peixes alertam para a necessidade de evitar uma turfa pouco fervida que acidifique excessivamente a água, com consequências indesejáveis a curto prazo: Oodinium. Para evitar este facto, deve-se ferver a turfa duas vezes durante 15 minutos, no mínimo. Na primeira fervura, para neutralizar os ácidos húmicos e tânicos, é aconselhável adicionar 1 colher de sopa de bicarbonato de sódio por cada litro de água de fervura. Dado que estas operações de tratamento da turfa são morosas, aconselho a preparação de uma grande quantidade de cada vez, a sua separação em lotes e a sua congelação até à data da sua utilização em aquário.
No ritual de acasalamento, o macho encosta-se à fêmea, lado a lado, e com a barbatana dorsal abraça-a e aperta-a. Daí resulta a expulsão de ovos que são rapidamente fecundados. Depois o macho com a barbatana caudal empurra os ovos levemente na turfa, enterrando-os ligeiramente.
O número de ovos que um casal produz por semana depende de vários factores nomeadamente a idade dos peixes, a alimentação fornecida, o volume do aquário e a taxa de renovação da água e da turfa. Um valor típico andará pelos 50 ovos por semana e por casal. Excepcionalmente, já tive em várias semanas, a sorte de contar mais do que 100 ovos por casal de N. elongatus, N. foerschi e N. flammicomantis. Tal facto deveu-se à conjugação de condições muito favoráveis nomeadamente a alimentação exclusiva com comida viva e abundante, espaço (aquários com volume igual ou superior a 20 litros) e idade óptima (de 3 a 4 meses de idade). Já tenho ouvido falar em registos superiores, nomeadamente 200 ovos ou mais por semana com N. korthausae.
A manipulação e armazenamento de turfa segue algumas regras. A turfa deve ser filtrada (uma meia de senhora em nylon serve perfeitamente), a água em excesso deve ser removida pondo alguma pressão e recorrendo à ajuda de jornais. O grau de humidade final depende de vários factores e varia com a espécie. Espécies que exigem períodos de diapausa (incubação em seco) prolongados, tais como o N. rachovii (de 4 a 8 meses) requerem uma turfa mais seca do que aqueles que tem uma diapausa muito curta (por exemplo 1 mês, como ocorre com o N. korthausae). Um valor típico de 2 meses de incubação e uma humidade intermédia parecem servir para a maior parte dos Nothos. Tenho tido bons resultados com a humidade que se obtém após a colocação da turfa em jornal durante de uma a duas horas. Se a espremermos com alguma força, não sairão mais gotas. A turfa deverá ser guardada bem dividida, com aspecto homogéneo, evitando os grandes torrões. A embalagem deverá ser hermeticamente fechada (para a turfa não secar completamente, e, em consequência, os ovos), tendo o cuidado de manter algum volume de ar. Costumo utilizar sacos de plásticos destinados ao armazenamento de alimentos congelados. A normalização facilita a arrumação, o que é importante quando se podem reunir dezenas de sacos de espécies e datas diferentes. Não se deve esquecer a rotulagem correcta de cada saco, com marcador à prova de água. Devem ser mencionados a espécie, o código da população e/ou localidade de colheita da mesma, a data de recolha da turfa, a data provável de eclosão e, de preferência, o número de ovos observados, para contabilizar mais tarde a eficiência de eclosão.
A temperatura de incubação deverá situar-se entre os 20ºC e os 30ºC, de preferência a 25ºC. A 30ºC, o período de incubação desce para menos de metade do registado a 25ºC. Como exemplo, a incubação de rachovii que desce para 2 meses, de acordo com várias fontes. Os valores indicados em várias publicações e na Internet devem ser considerados a título meramente indicativo. A experiência de cada criador é mais importante e, mais uma vez devo salientar que estes tempos variam com muitos parâmetros, muitos dos quais de difícil avaliação. Refiro-me à humidade da turfa e à humidade relativa do ar, entre outros. O ideal é a observação cuidadosa de alguns ovos (tendo o cuidado de abrir o saco durante breves instantes para não alterar a humidade da turfa) de forma a visualizar o embrião completamente desenvolvido (os olhos estarão bem diferenciados e até será possível observar o movimento do mesmo dentro do ovo). Aí será o momento correcto para a molha. Mas mesmo assim, poderá não ocorrer a eclosão. E mesmo que se dê, não ocorrerá em todos os ovos. Este desenvolvimento desfasado dos embriões faz com que seja prudente secar de novo uma turfa após eclosão (ou não) e voltar a molhar 1 mês depois, 2 meses depois e até mais até à eclosão de todos os ovos férteis. Podem ocorrer eclosões escalonadas ao longo de 6 meses consecutivos! Na natureza, isto surge da necessidade de preservar as espécies de Nothobranchius da existência de chuvas esporádicas que pouco tempo depois voltam aos periodos de seca, com evaporação rápida das poças formadas e a perda irreversível de ninhadas.
Falta fazer uma referência mais detalhada à alimentação destes hóspedes. Os alevins crescem rapidamente se a dieta for variada e constituída por infusórios, rotíferos, nauplii e microvermes. Os adultos preferem idealmente comida viva de maiores dimensões: artémia salina, larvas de mosquito, dáfnias, tubifex e pedaços de minhoca de terra. Toleram, embora com menor entusiasmo, comida congelada. Também aceitam, se para isso forem “educados” comida rica em proteínas (pedaços de pescada cozida, mexilhão, delícias-do-mar ou “surimi” e coração de vaca, entre outros).
Deve ser sublinhado o facto destes peixes detestarem jejuns prolongados, dado o seu metabolismo rápido. Alguns dias sem serem alimentados deixa-os num estado de fraqueza de difícil recuperação. Mais tempo deixa-os irrecuperáveis e leva-os à morte. Daí o facto de muitas vezes, estes peixes serem apresentados às várias convenções em estado debilitado, após prolongada expedição de correio e viagem. E daí o facto de muitas vezes a compra destes peixes em leilão poder ser um mau negócio para quem compra…Pelo que é mais seguro trocar, comprar e vender ovos em turfa. E uma maneira mais expedita de os enviar para qualquer parte do mundo, o que torna este hobby ainda mais divertido!
E com isto fica feita a apresentação de alguns dos peixes mais belos que se podem encontrar em aquário.
Oxalá possa ter com “os peixes que caiem da chuva” como diziam representantes das tribos Zulus e Maasais que habitam a África, os mesmos momentos de prazer que eu tenho experimentado.